Eu havia acabado de voltar do Deserto de Mojave quando Giovanni Mello, meu companheiro de aventuras, convidou-me (seria melhor dizer, impôs-me!) a tornar realidade um antigo projeto seu: contornar correndo a Ilha Grande, no litoral do Estado do Rio de Janeiro.
Esta trilha, bastante conhecida entre os montanhistas, é feita caminhando-se normalmente em sete dias, com os devidos pernoites em pontos paradisíacos da ilha, o que não é nada difícil de achar. Para se ter uma ideia, alguém fechando os olhos em frente a um mapa da ilha e indicando com o dedo um ponto qualquer, pode apostar dez pra um que apontou para um paraíso ecológico, independentemente de ter acertado na terra ou no mar.
Em poucas reuniões, definimos os detalhes práticos e estratégicos desta inédita corrida. O ponto nevrálgico do projeto seria o trecho entre Caxadaço e Dois Rios, devido ao pouco uso da trilha e às dezenas de desvios de pescadores. Assim, para evitar pegar este trecho durante a noite, o que dificultaria sobremaneira a navegação, invertemos o sentido inicial da travessia, passando a correr no sentido horário. Desta maneira chegaríamos a este ponto antes do final da manhã.
No dia planejado, ao entardecer, estávamos na proa de uma pequena traineira sentindo um delicioso vento no rosto, enquanto víamos a Ilha Grande crescer à nossa frente. Após armarmos a nossa barraca num camping na Vila de Abraão e comermos uma deliciosa pizza assada em forno de lenha, tentamos dormir para acordar às 5h. Eu disse “tentamos” porque a maioria das barracas estava ocupada por “campistas de feriado”, que não têm capacidade de perceber a diferença entre uma boate e uma área de camping.
Pagamos um preço alto por não termos passado esta noite num caro hotel cheio de estrelas. Acordamos dezenas de vezes durante a noite, iniciando a nossa manhã com mais vontade de dormir do que correr…
Com uma foto às 6h10, instantes antes da nossa partida, registramos o início de mais este desafio.
Após trotarmos dez minutos para aquecer, demos uma parada e nos alongamos despreocupadamente. Sabíamos que este tempo gasto seria de muita valia durante toda a corrida.
Em seguida voltamos a correr, preocupando-nos em ingerir água ou isotônico a cada dez minutos, religiosamente lembrado por nossos cronômetros. Sem falar nos complementos de guaraná em pó, ginseng, BCAA, Ginkgo biloba e lecitina de soja, tomados regularmente segundo a tabela dada por nossa nutricionista Christiane Rodrigues.
Nossa primeira parada foi perto das 11h, ao chegarmos em Dois Rios, após passarmos quase que tranquilamente pelo trecho que tanto nos preocupava. Realmente, as dicas dadas na véspera por um veterano caminhante local, foram valiosas.
Comemos então o nosso primeiro sanduíche de queijo e fizemos alguns exercícios de alongamento.
Às 12h41, ao chegarmos em Parnaioca, presenciamos uma cobra almoçando um sapo. Este foi um bom motivo para descansarmos uns três minutos, observando e fotografando a rudeza da natureza.
Continuando em seguida, os cenários revezavam-se entre montanhas e praias, praias e montanhas, indefinidamente. Em uma dessas trilhas cruzamos por dois caminhantes que nos alertaram da presença de fiscais do Ibama no início da Reserva Biológica, fazendo restrições à passagem. Um desses dois caminhantes, aliás, era o ultratrekkista Fabio Galvão.
Na dúvida sobre a possibilidade de cruzarmos esta área, mesmo sem estarmos levando barraca e equipamentos para acampar, torcemos para eles subirem no helicóptero e irem almoçar, deixando-nos algum tempo para corrermos pela Reserva. E não é que a força do nosso pensamento deu certo? Quando estávamos exatamente no ponto em que seríamos vistos se passássemos — ou perderíamos tempo se parássemos —, eles levantaram voo. Este foi mais um motivo para acelerarmos a nossa velocidade e cruzarmos toda a Reserva Biológica o mais rápido possível.
Perto das 14h chegamos ao mangue que separa a Praia do Leste da Praia do Sul, ainda dentro da Reserva. Este foi um momento tenso, pois a água estava completamente turva e não tínhamos qualquer possibilidade de cruzá-lo calçados, ou arriscaríamos ficar com bolhas nos pés quando voltássemos a correr com tênis molhados durante várias horas. Em compensação, o risco de furarmos um pé poderia colocar o projeto a perder. Mas nada de errado aconteceu. Cerca de vinte minutos depois já estávamos correndo sobre uma areia mais macia do que devia.
Chegando ao final da Praia do Sul, outro limite da Reserva Biológica, encontramos mais fiscais do Ibama que desfizeram a nossa errônea ideia de que seríamos barrados mesmo não acampando.
No meio da tarde chegamos à Praia do Aventureiro. Outro sanduíche e um chocolate deram-nos gás suficiente para enfrentarmos uma das mais íngremes subidas do circuito, que nos levou até Provetá. Lá, fomos direto a uma pequena padaria e acalmamos as nossas barrigas que já gritavam há algum tempo. Até sorvete caseiro teve! Nada mal para um desafio desses…
Tentando tirar o atraso dessa parada, voltamos a correr num ritmo muito bom, mantendo uma velocidade bem razoável até durante as subidas.
Finalmente, a noite chegou.
Estávamos em uma das pequenas vilas de pescadores que existem ao redor da ilha, quando bateu 19h15 e o sol, que já havia se posto há alguns minutos, não conseguiu mais manter a sua tênue claridade.
De lanterna na cabeça, continuamos correndo quando um fortíssimo temporal desabou sobre toda a Ilha Grande.
Às 22h, com a intensidade da chuva exatamente igual aos primeiros minutos, não conseguíamos correr sem escorregarmos nas íngremes descidas que mais pareciam feitas de sabão molhado. Esta situação prorrogou-se até 0h30, quando nos abrigamos na varanda de uma escola local.
Ironicamente, após cerca de quatro horas de um absurdo e ininterrupto temporal, a chuva praticamente acabou quinze minutos após termos nos refugiados.
De volta à corrida, continuamos sem grandes paradas até chegarmos ao Saco do Céu pouco depois das 5h, quando o sol teimava em novamente aparecer. Este lindo trecho do percurso, valorizado pelos primeiros brilhos do sol, foi percorrido intercalando-se corrida e caminhada, pois toda a nossa musculatura já dava sinais de um quase completo esgotamento.
Como se estivéssemos acordando de um pesadelo, com a noção exata de sentir a existência de cada músculo e articulação do corpo, passamos pelo Aqueduto e, minutos depois, avistávamos o nosso ponto de chegada ao longe. Isto resgatou-nos uma energia não-sei-da-onde, e voltamos a correr num ritmo vitorioso.
Devido à nossa empolgação erramos o cálculo da distância, pois havia uma curva disfarçada pela paisagem, o que nos obrigou moralmente a manter o tal ritmo vitorioso por mais tempo do que esperávamos.
Finalmente, às 7h51, exatas vinte e cinco horas e quarenta e um minutos depois, chegamos em frente ao ponto de onde havíamos partido na véspera. Mais uma vitória sobre nós mesmos e as nossas fraquezas!
Comemoramos com dois sanduichões e muito leite na padaria mais próxima e com um sono pesado até o meio da tarde. Acordamos planejando o nosso próximo desafio…